A névoa do azul
A rua estava tão silenciosa que até a lua
resolveu adormecer, então eu parei de caminhar e resolvi passar pela casa dele.
Pensei em ligar para A.C. e logo me
arrependi porque eu queria acha-lo...
Somente eu!
Meu coração saiu em disparada quando dobrei
a esquina sabendo que mais alguns passos eu estaria ali, bem perto dele.
Estanquei e verifiquei se minha mente
estava lúcida porque eu não poderia cometer mais erro algum. Respirei fundo até
me acalmar e foi aí que eu percebi, na pequena janela do porão, um fio de luz
que tremeluzia invadindo calçada e meus pés.
Observei rapidamente esquinas, casas,
árvores, jardins... E tudo ao redor parecia mortificado.
Então, pé ante pé, me aproximei da portinhola
encostando meu ouvido só pra saber ser a
nossa música enchia o ambiente. Quem sabe meu coração se aquietaria e tudo
ficaria igual como sempre foi... Mesmo porque eu já tinha me acostumado, e eu o
amava!
Nada ouvi...
Fiquei estremecida, mas ao mesmo tempo a
coragem disse ao pé do ouvido: _”bata na porta”!
Oh, a porta... Tão judiada pelo tempo, mas
podia-se (ainda) ver os veios da madeira e a tinta azul descascada revelando
segredos. Os nossos segredos!
Sem demora bati, mas nem foi preciso usar
de força porque estava encostada. Com a maçaneta entre meus dedos eu
finalmente abri, entrando cautelosamente.
O abandono e o silêncio recepcionaram-me de
modo cruel enquanto eu procurava (ansiosa) por Apolinário.
Sobre a mesa o velho bule de esmalte
marrom, rodeado por duas canecas de uma louça surrada e lascada. O chão estava
recoberto de velhos papéis espalhados de forma brutal. Alguns rasgados, outros
amassados e pisoteados. Na antiga poltrona azulada avistei seu casaco e
cachecol e logo um pensamento (breve)- trouxe algum alento ao meu coração aflito
achando que ele estaria por perto. Entretanto nem seu cheiro mais residia no
local.
Nas paredes havia muitas folhas de papel
desenhadas num rabisco desesperado a figura de uma mulher. Senti-me como num
redemoinho sem fim quando me dei conta que em toda volta do porão - pelas
paredes - os desenhos continuavam.
Era um rosto sutil, de formas bem
delineadas. O queixo proeminente ressaltava os lábios de carmim. O nariz
perfilado e pequeno evidenciava um arrebitado charmoso. Nos olhos trazia todo o
desejo dos mares, em vagalhões que ia de um azul carbono até o violeta. Os
cabelos estavam soltos e os cachos acobreados nas pontas, desciam sobre os seios envolvidos
por um decote atrevido no entalhe perfeito das curvas, que se escondiam sob um
tubinho cor de anil.
Quando desci meus olhos para enfim
terminar aquela mulher fatal, vi
finalmente os sapatos. Eram azuis!
Oh céus... Nenhuma novidade para mim!
Adentrei mais a fundo naquele emaranhado de
ilusões e fui até seu armário que ficava
do lado oposto à pequena janela. Abri sofregamente a porta e me deparei com um
calendário todo amarelado, que exibia algumas queimaduras semelhantes à ponta
de cigarros. Estava meio escuro ali, então o arranquei com alguma fúria,
levando perto da lamparina e lá eu pude ver ela
- Sue a mulher azul!
Oh... Fiquei sem forças e vi que meus joelhos
dobravam-se e minha visão estava ficando turva e por um momento deixei-me cair na poltrona...
Para logo em seguida, num gesto brutal, ferir aquela folha com meu olhar de
adrenalina.
Olhei bem para a mulher estampada ali e ela
era igualzinha ao desenho da parede. De relance percebi ser uma pinup
voluptuosa de pernas bem torneadas e dedinho na boca inventando uma Marilyn
Monroe.
Meu ódio atiçou-me contra a parede e eu
comecei a rabisca-la e foi aí que eu vi entre tantos esboços uma figura da Torre Eiffel com
todas as luzes que Paris sempre teve orgulho em exibir, entre outros cantos
famosos do fascínio parisiense, e que parecia ter sido colada a pouco.
Embriagada por tanta decepção tropecei em
um manequim despido e amorfo que servia
de cabide onde eu vi o sobretudo que ele tanto gostava de ostentar sentindo-se
o mais francês dos homens.
Depois de todo esse tormento eu acabei
achando sob a mesa um embrulho. Abaixei-me rápido e o abri furiosa...
Era somente um livro de anotações... Na
primeira página lia-se:
G.
Apolinário - Professor de Francês e brasileiro de coração
Desaparecido ou possivelmente morto em
busca da mulher azul...
Larguei a
caderneta e já sem forças, sentei-me no chão frio e abandonado de humanidades.
Lá fora se ouvia uma sirene que foi se aproximando, se aproximando até que o
luminoso no alto da ambulância iluminou meu rosto patético.
Saí na disparada. Na calçada encontrei A.
C. que chorava copiosamente e quando me viu abraçou-me com pena dizendo:
_ Alline, meu amigo e teu amor foram-se, e
com ele um pouco de nós...
_ Como assim A. C. pra onde ele foi? VAMOS,
DIGA LOGO!
Sem proferir nenhuma palavra, seus olhos
evidenciaram o fato inclinando a cabeça para a ambulância.
Corri
esbaforida...
Estendido feito um boneco de gesso, sobre a
maca, vi Apolinário. Seu rosto mesmo cadavérico
exibia um sorriso de felicidade. Na mão direita tinha uma espécie de carta que eu não
conseguia distinguir. Gritei como jamais
ninguém ouvira (nem eu própria)...
Íamos nos casar...
Ao tirar a tal carta de sua mão meus olhos
intolerantes leram:
PARA SUE - MEU GRANDE E ÚNICO AMOR. LEVO COMIGO O SOM DO
FREVO QUE SAÍA DE TEUS SAPATOS E A CERTEZA DE QUE NO AZUL DO INFINITO TE
ENCONTRAREI.
Apolinário foi encontrado morto por inanição no porão onde morava.
Rodeado por seus manuscritos em língua francesa e seus livros didáticos os
quais eram dedicados a seus alunos.
By Lu Cavichioli
*Esta série tem como base a releitura de um
conto de Roberto Drummond que está contida na coletânea homônima que tem por
título A Morte de D. J. em Paris.
Nesta série eu retrato a história de um
professor de Frances que sonha com uma mulher azul e que alimenta a possibilidade
de um dia se encontrar com ela na cidade-luz
Estrelando como personagens:
G. Apolinário
D.
J. (criação de Roberto Drummond)
A. C. (amigo/irmão)
Marina (irmã de G. Apolinário)
Alline (sua noiva)
Sue ( *mulher azul)
*Termo criado
por Roberto Drummond